O ano era 1991, nem faz tanto tempo assim, quando a TV
Manchete resolveu investir de verdade no programa Clube da Criança apresentado
pela Angélica. Para isso criou uma abertura com atores e técnicas pouco vistas
no Brasil de então
.
E não apenas nesse sentido! A abertura que mostra o cotidiano doméstico
de uma família antes de começar o programa da loirinha é das coisas mais
abjetas que a televisão brasileira já apresentou.
O conceito provavelmente era referenciar os cartoons norte-americanos dos anos 50. Mas eles não ficaram apenas na estética, absorvendo conceitos bastante discutíveis e já refutados ali no começo daquela última década do século XX.
Começa pela empregada ser interpretada por uma negra com figurino que remete ao estereótipo de Mãe Preta ou Mammy. Imagem difundida na cultura popular, principalmente norte americana, a partir do século XIX, que fixava a imagem da mulher negra aos trabalhos domésticos (leia mais sobre
esteriótipos raciais aqui).
Mas não estamos falando dos EUA segregados dos anos 50, mas
do Rio de Janeiro do começo da década de 90. Ok, escandaloso, mas tem mais coisas
terríveis nessa abertura de programa vespertino infantil.
A mesma domestica caminha pelos cenários interagindo com os
membros da família branca. No banheiro olha pelo buraco da fechadura onde um
homem toma banho.
E a hiper sexualidade vem à tona, além, claro, da pouca
confiança que essa imagem transmite. Logo depois ela vai cuidar do menino
branco que está doente na cama e lavar pratos dividindo a atenção com o
trabalho de babá de um bebê também branco.
Na sala estão uma idosa com toca capilar, uma menina branca
com roupas de balé passando tempo jogada no sofá e um técnico tentando arrumar
a TV da família. Quando passa um dirigível eles ficam eufóricos porque vai
começar o programa e a televisão ainda está estragada.
O menino que estava de cama imediatamente melhora. Ele começa
a levantar peso enquanto vê a foto da apresentadora lhe mandando piscadelas.
Aí chega a dona da casa que estava fazendo nada mais do que
compras. Só que ela não segura pacote algum, quem faz isso é uma criança negra.
Lembrando que a garota branca continua no sofá sem fazer
absolutamente nada fora girar ou falar ao telefone.
O técnico continua tentando arrumar a TV, toma um choque elétrico
e nessa altura do campeonato a gente já começa a achar que a coisa mais obvia
no raciocino torto de quem produziu essa abertura era ele aparecer de blackface. E é isso mesmo!
Para não haver dúvida do black face (forma pejorativa com
que os negros eram retratados por brancos) a edição corta do rosto dele pintado para o da menininha que chegou segurando os pacotes da dona da casa. Só aí vemos seu rosto e o visual
da garota é o estereótipo racista que os americanos chamam de “Pickaninny”.
Bom, a TV vira uma máquina de lavar, parece que não haverá
Clube da Criança naquele dia. Aí a vovó se levanta e vira uma caricatura
asiática dando golpes de karatê.
Se tem blackface tinha que ter yellowface, não é mesmo?
A dona da casa tem um verdadeiro chilique, e desmaia no sofá. Quem a fica abanando em pé? A menina negra!
Isso tudo exibido de segunda à sexta nas tardes em 1991 para
crianças! País onde não há racismo, segundo muitos dizem.
Existe no YouTube a versão reeditada (com um tempo menor) desta abertura. Não sei por qual motivo concreto a mudança ocorreu, mas
essa outra versão tirou quase todas os planos citados acima que envolvem a menina negra.
O personagem da menina que carrega as compras quase desapareceu e
o técnico tem menos destaque quando fica com a pele pintada de preto. Com a existência desta segunda versão cai
por terra qualquer argumentação de que agora tudo é mimimi, de que agora não se
pode mais nada que alguém sempre fica ofendido.
Ofender alguém por raça, credo, origem ou orientação sexual nunca
pode, tanto hoje quanto em 1991 ou sei lá quando. Sem internet as vozes ficavam
isoladas, foi isso o que mudou!
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