Silvio de Abreu: "Helena Ramos nunca reclamou de absolutamente nada"

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Dependendo do valor (cultural e financeiro) do que se encontra nos sebos é impossível não tentar criar na nossa mente os motivos para que uma pessoa se desfaça daquilo. Ainda mais por um valor quase sempre tão baixo. Só me faltava essa, quando eu der com as dez minhas coisinhas irem parar nessas lojas a preço de jujuba... Ontem me deparei com a biografia de Silvio de Abreu, que se não fosse ele uma figura de suma importância para a TV e o cinema no Brasil, mesmo assim seria um livro interessante devido à escassez de tal gênero sobre profissionais daqui. E ainda há uma dedicatória do punho do próprio Abreu à tal Danielle!!! Das 435 páginas, das quais já li 275, destaco o capítulo sobre Mulher Objeto, que você lê na íntegra logo abaixo. Nele o autor conta com seu famoso bom humor como chegou até a idéia hitchcokiana da mulher que não podia fazer sexo, e a escalação de Helena Ramos, a principal diva das pornochanchadas.


O Vilão Sexo

Considero meus quatro primeiros filmes apenas como de aprendizado. Esse foi o lado bom da pornochanchada; quase qualquer filme dava bilheteria, então se podia aprender fazendo. O público não ia ao cinema para ver produções bem feitas e sim as mulheres peladas, que nem eram tão peladas assim. Meus primeiros filmes deram dinheiro, mas nenhum deles é bom. Mulher Objeto é diferente. Quando fui fazê-lo, estava pegando um tema que me interessava e não tinha a obrigação de ser engraçado.

A proposta era de um filme erótico sobre uma mulher que não se relacionava sexualmente com o marido e ficava sonhando em conseguir orgasmo com outros homens. Assim que li o roteiro de Alberto Salvá e Jaime Camargo, percebi que podia resultar num filme interessante, mas queria adaptá-lo mais ao meu gosto pessoal e Anibal Massaini, o produtor, me deu carta branca. Debrucei-me sobre aquela história de sexo e erotismo a partir do personagem da mulher, querendo armar um woman's Picture, anos 40, sobre ela. O roteiro ficou pronto, me agradava bastante, mas alguma coisa estava faltando e eu não conseguia atinar com o que fosse.

Pouco tempo antes de começar a filmar, Rubens Ewald Filho, em uma conversa informal, dentro do meu carro, na Alameda Campinas, me deu a chave: Por que não faz um thriller? Você gosta tanto de Hitchcock! Compreendi imediatamen­te e, num estalo, comecei a ver o filme pronto na minha cabeça. Nada precisava ser mudado no roteiro, mas a direção passaria a ter um enfoque totalmente diferente, usando a. narrativa e o clima de um filme policial, com luz recortada, sombras e câmera subjetiva. Mas quem estaria atrás daquela câmera, quem espreitava a vida daquele casal, daquela mulher? Foi aí que brotou a idéia de usar o sexo como vilão da história. Um casal anseia ser feliz, mas não consegue porque o sexo atrapalha. Então, toda a vez que a mulher fica perturbada, ela vê alguém: é um impedimento para a realização de algo que ela anseia e não simplesmente a vontade de realizar uma cena erótica, o que trouxe ao filme uma dimensão maior. Além de ter feito uma carreira excelente de público, Mulher Objeto foi muito bem aceito pela crítica e é citado até hoje como um exemplo de filme erótico digno e bem feito.

Queria um filme de respeitabilidade, mas como realizá-lo com meu currículo de diretor de pornochanchadas e com um produtor do mes­mo ramo? Dependendo do elenco, iria, sem dúvida, virar uma pornochanchada, mesmo antes de chegar às telas. Precisava de atores de prestígio, acostumados a ter os seus nomes ligados a produções de qualidade, que tivessem trabalhado com diretores importantes, ganhado prê­mios. Primeiro fui atrás de Sônia Braga, que não se mostrou interessada. Vera Fischer, Bruna Lombardi e Sandra Bréa também recusaram. Esse pornochanchadeiro vai me botar lá pelada e eu tô perdida, elas deviam pensar, diante daquele roteiro com 18 cenas de sexo, descritas em detalhes.

Por que você não convida Helena Ramos?, ouvi do Anibal e lhe disse que ele estava maluco. Tinha muito preconceito em relação à Helena, uma das mais conhecidas atrizes dos filmes eróticos, e de jeito nenhum iria fazer um filme com ela; queria uma atriz de verdade, queria reconhecimento à minha arte. Mas como não teve outro jeito, Anibal a chamou para que a conhecesse. Helena Ramos apareceu uma tarde lá na produtora Cinedistri, nos fechamos numa sala e ela me disse que tinha lido o roteiro, adorado e desejava muito fazer o filme. Nossa conversa fluiu e derrubou meu preconceito diante daquela moça que se mostrava decidida, séria, profissional e absolutamente empenhada em fazer o papel: Preciso fazer um filme como este, sei que vai melhorar a minha carreira; confio e faço o que você quiser. Sua confiança e disponibilida­de foram fundamentais, pois sem elas jamais teria conseguido rodar o filme.

Helena Ramos nunca reclamou de absolutamen­te nada, estava sempre na hora, sabia o texto, obedecia as marcações, seguia as entonações e respondia aos estímulos. Apenas tivemos um problema na última cena rodada. Era uma seqüência de sexo bem atrevida, ela nua com o corpo coberto de óleo para suas lindas formas brilharem ao sol, em cima de um cavalo com o Danton Jardim, também nu. Mandei repetir muitas vezes e ela acabou perdendo a paciência: Não posso cavalgar mais, estou grávida, vou perder meu filho. Ninguém sabia dessa sua condição e, com isso, mais uma vez provou seu profissionalismo, agüentando o quanto pôde para realizar a cena da melhor maneira possível. Por puro preconceito e vaidade besta, quase deixei de ter a intérprete ideal para meu filme. Continuava vivendo e aprendendo.

Minha escolha para o marido da protagonista, Antonio Fagundes nem titubeou: Aceito, sim, mas só se fizer a mulher, porque o papel do marido não é bom. Não era mesmo e foi para Nuno Leal Maia, que estava escalado para personagem menor. Foram se agregando ao elenco atores que já tinham trabalhado comigo na televisão ou nos filmes anteriores, como Maria Lúcia Dahl e Kate Lyra. E para viver a mãe de Helena Ramos, chamei Iara Amaral, minha amiga desde os tempos da Escola de Arte Dramática, quando éramos vizinhos e ela ainda trabalhava no Citibank.

Erótico, quase sexo explícito, Mulher Objeto mexeu com a libido de homens e mulheres indistintamente. Mas era elegante, tinha uma aura de Emanuelle, o padrão de sensualidade daqueles anos. Em 1984, o vice-presidente da 20th Century Fox, Peter Myers, veio ao Brasil selecionar filmes para a empresa distribuir no merca­do americano. Assistiu a mais de 40 produções nacionais e escolheu só uma, Mulher Objeto. Anibal e eu fomos almoçar com o gringo no Maksoud Plaza e a primeira pergunta foi onde eu aprendera tanto sobre sexo e erotismo e eu, com a maior cara-de-pau, respondi sem floreios: Na cama. Quem me dera!

Peter Myers queria negociar o filme com a condição de que fizéssemos uma continuação, pois já existiam várias Emanuelle. Disse que só queria mexer na trilha sonora e me perguntou: Você gosta de Alfred Newman? Quase caí para trás ao ouvir o nome do compositor das trilhas da Fox, nunca me senti mais perto da meca do cinema. Algum tempo depois veio a proposta financeira concreta: 400 mil dólares mais porcentagem de bilheteria e Anibal não aceitou, queria um milhão e o negócio não foi concretizado. Bye bye, Holywood, hello again, TV Globo!


Silvio de Abreu - Um Homem de Sorte (Páginas 241 a 247)
Imprensa Oficial – Fundação Padre Anchieta (2005)


[Ouvindo: Face to Face – Siouxie & The Banshees]

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4Comentários

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  1. Que legal, Miguel ! Bacanérrimo esse post, muito bom ! Dá vontade de ler o livro de Silvio Abreu !
    Aí a gente vê que blogs servem pra tantas coisas além de egotrips bizarras, textos depressivos de transtornados bipolares, receitas de bolo e fofocas toscas.
    Parabéns !

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  2. Transtornados bipolares é a melhor coisa! hihihihi!
    Eu to meio enjoado de topar com blogs adolescentes com críticas de cinema. Acho muita pretensão neguinho assistiu um filme ou outro na Sessão da tarde e se acha no direito de publicar suas críticas. Nem comentários eles dizem, usam a palavra crítica mesmo. Mas enfim, é só não voltar. É a vantagem da web. A gente seleciona o que quer ler.

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  3. Não conheço blogs de críticas além do seu, que é ótimo e já é suficiente.
    Acho que nunca deixei comentários porque não há nada a acrescentar ao que já está dito e não comento por comentar.
    Mas leio sempre.

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  4. Afe! Obrigado! Deu até vergonha agora... Ah, terminei a biografia do Silvio de Abreu... Se achar leia! Muito bacana!!!

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