Aquela que comeu o pão que Hitchcock amassou

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O melhor filme já produzido sobre a arte de se fazer filmes talvez seja Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958). Ali, Alfred Hitchcock livremente discorre sobre a habilidade em criar expectativas, manipular emoções de terceiros e principalmente construir a mulher ideal. É seu trabalho mais pessoal.

O diretor inglês nunca demonstrou o mínimo apreço por atores porque levava tanto tempo elaborando tudo que filmar era um tanto quanto enfadonho, ainda mais se tentassem criar em cima do planejado. Atores eternamente na corda bamba, entre criação e fazer o que são mandados, encontravam no velho Hitch barreira intransponível à primeira opção. Em sua cabeça o filme já estava pronto!

Tentou corrigir a declaração de que atores são gado com a de que na verdade queria dizer - que deveriam ser tratados como tal. Invejava Walt Disney como cineasta porque ao estar insatisfeito com o trabalho de algum astro, bastava passar a borracha.

Conta-se nos dedos os que conseguiram ter sua performance destacada trabalhando com ele. No caso das protagonistas femininas sentia-se à vontade com beldades com talento dramático a princípio nulo.

Odiava imprevistos chegando a evitar ao máximo cenas externas, preferindo a artificial retro projeção a se expor às mudanças climáticas. Com humanos, idem. Bastava ser uma modelo muito bonita e claro, obediente. Casado com a colaboradora Alma, num relacionamento, segundo quase todos os biógrafos, de sexo totalmente ausente, costumava se apaixonar perdidamente por suas estrelas.

Uma paixão tão forte, que queria transformá-las o mais próximo possível de seu ideal de perfeição, inclusive na vida pessoal. Ingrid Bergman foi a primeira famosa, até conhecer o cineasta Roberto Rossellini num ruidoso relacionamento extraconjugal. Isso por muito tempo a transformou em persona non grata de Hollywood. Puro veneno pras bilheterias.

Grace Kelly, sem sombra de dúvidas, foi a preferida. Gélida, de sex appeal controlado e de inegável classe até quando na hora de um piquenique pergunta a Cary Grant se ele prefere peito ou coxas. De frango!

Teria eternamente trabalho com Hitchcock. Se não tivesse sido apresentada pelo próprio ao príncipe Rainier de Mônaco durante as filmagens de Ladrão de Casaca (To Catch a Thief, 1954). Para a jornalista Dulce Damasceno de Brito, a própria atriz em vésperas de se casar negou tanto esta versão quanto a de que teria sido apresentada ao futuro esposo por seu atual namorado.

Hitchcock deve ter suspirado, mas nesse caso compreendido a perda de sua musa. Tanto é que continuou tentando contratar a então Princesa de Mônaco para seus projetos. Bola pra frente!

Com Vera Milles pareceu-lhe desde o início que tinha achado a garota certa. Uma desconhecida aos olhos do cinema americano, com algum destaque na TV, disposta a se tornar grande estrela. O contrato de sete anos com o diretor (sim, elas eram contratadas dele, não dos estúdios) veio junto com um novo guarda roupas desenhado especialmente para ela por Edith Head, papel em O Homem Errado (The Wrong Man, 1958) e a proibição veemente de fazer comerciais usando maiô.

Tudo preparado para o grande salto de sua carreira em Um Corpo que Cai, quando “apunhalou” Hitchcock ao ficar grávida de um Zé Qualquer aspirante a astro B. Só voltaria a seus filmes em um papel secundário de Psicose (Psycho, 1960) e logo depois teve o contrato rescindido. Milles seguiu trabalhando na TV.

Obrigado a substituir a atriz principal em cima da hora, coube à modelo Kim Novak o complexo texto de Um Corpo que Cai, para muitos a obra prima do cineasta. Raios e trovões caíram no set, com Novak teimando em interpretar, veja você!

Logo depois, com o sucesso estrondoso de Psicose, que redesenharia a história do gênero horror para sempre, demorou quase quatro anos para Hitch tentar se superar. Voltou a trabalhar numa adaptação de Daphne Du Maurier, autora de Rebecca - A Mulher Inesquecível (Rebecca, 1940), livro que originou seu primeiro trabalho americano.

Para Os Pássaros (The Birds, 1963), Hitchcock encantou-se com uma garota que viu pela primeira vez num comercial de TV. Tippi Hedren, com jeito de boneca de carne - bastariam alguns retoques para ser, enfim, uma nova Grace Kelly!

Novamente em sua paixão avassaladora, interferiu logo de cara em seu nome artístico incluindo incomuns aspas no apelido. “Tippi” Hedren parecia ser mais submissa que Vera Milles, estando disposta a todo tipo de tortura nos ataques das aves. Na vida pessoal, conta o colunista Kenneth Anger em Hollywood Babylon II, que topou um fetiche do diretor: fez strip-tease numa janela, enquanto ele, usando binóculo, a espiava de uma casa em frente. Anger afirma que apenas Kelly já tinha feito o mesmo.

Como paciência tem limite, junto ao cansaço das filmagens vieram as reclamações de Hedren. Ousada, começou a perguntar o sentido de muitas cenas. Lá no clímax, depois que toda a ilha já havia sido atacada pelos pássaros, Melanie ouviu um barulho no sótão e foi checar o que era. Indagou qual a motivação pro personagem colocar-se em risco depois de tudo que tinha presenciado. Ouviu a resposta seca: “Porque EU estou mandando!”.

Na continuidade desta cena, chegando ao sótão, fica lá trancada, sendo bicada por centenas de animais. Como simplesmente jogar as aves em cima dela não causava o efeito desejado, Hitchcock teve a “brilhante” idéia de costurar-lhes as patinhas à roupa da atriz.

Com o fim das filmagens, comprou os direitos de Marnie, Confissões de uma Ladra (Marnie, 1964) tendo a idéia fixa de convencer a Princesa de Mônaco Grace Kelly a sair da aposentadoria e retornar às telas. Pareceu-lhe genial ver uma nobre no papel de cleptomaníaca frígida domada por milionário sedutor.

Balançada pela volta ao brilho dos holofotes hollywoodianos, a princesa teria aceitado. Com todo projeto em andamento, o principado de Mônaco viu-se em situação delicada a ponto da atriz não poder se ausentar da França por um longo período.

Magoadíssimo, e acreditando que com a recusa o filme não faria mais sentido, convocou novamente “Tippi” Hedren para protagonizar. Essa produção seria o começo de todos os problemas que vincariam seus últimos trabalhos.

"Tippi", mãe da atriz Melanie Griffith (com 5 anos), tinha se transformado em estrela com o sucesso de Os Pássaros. Como um filho rejeitado, Hitch levou as filmagens, que normalmente já eram cansativas, com menos esmero, e óbvio, exigiu muito mais da agora realmente substituta de Grace Kelly.

Não suportando o sufocamento amoroso dentro e fora dos sets, a atriz cortou relações com o diretor no meio do trabalho, o que além de deixá-lo furioso o fez perder total interesse pela obra.

No livro Saudades do Século 20, Ruy Castro conta que como vingança (um tanto infantil) Alfred mandou confeccionar uma mimosa bonequinha idêntica à atriz e enviou-lhe dentro de um caixãozinho.

Em entrevistas, ela conta o que ganhou além disto. Como todas as outras, era contratada do diretor, ainda mais sendo uma descoberta sua. No auge logo no papel de estréia, mesmo com o resultado morno do seguinte Marnie, Confissões de uma Ladra, passou a ser assediada por vários estúdios. Hitchcock simplesmente não cancelou seu contrato nem tão pouco a cedeu pra ninguém até ela deixar de ser a bola da vez.

Perguntada sobre qual seria o estopim da desavença, Hedren disse que no meio de uma discussão o chamou da única coisa que ele jamais admitiu: “Seu gordo!”.


[Ouvindo: Rumeno Swing – Armando Sciascia]

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8Comentários

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  1. Lendo e aprendendo. Mas o velho Hitch era mesmo muito doido, né? E essa de costurar as garras dos pássaros às roupas da pobre atriz, é pior que tortura medieval. Credo!

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  2. Era uma mente única! Cada vez que vejo os filmes dele sempre há o que se reparar pela primeira vez!!!

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  3. Ai, Miguel, deixei ptra ler o texto no final do dia, com calma. Suas histórias são ma-ra-vi-lho-sas!

    Estou esperando TUDO sobre Elvira Pagã. Eu sei que ela não chega aos pés das certinhas do la Dolce, mas...

    Pode ser da Eros Volúsia também...

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  4. Letícia! Hehehehe... A começar por ela ser da região onde cresci? Hahaha

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  5. Ela quem? Eros ou Elvira?

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  6. Como eu disse no Face, já tinha lido esse texto há anos, mas adorei reler agora. Acho que ainda está bem atual e o conteúdo é perfeito.

    Será que um dia a gente consegue ver um filme juntos? Comendo pipoca e comentando detalhes? Seria delicioso!

    Abração!

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