
Entendi completamente o patrimônio televisivo que é o casal Tarcísio e Glória depois que assisti a Irmãos Coragem (1970) em DVD. Virei fã, topava até assistir á atual novela das 8 só pra ver o João Coragem na terceira idade (mas ele já tinha batido as botas!).
Muito carismáticos, é provável que suas carreiras tivessem tomado outro rumo sem estes seus personagem. Ou suas vidas, já que quando não estão trabalhando, vivem “reclusos” numa fazendo ao sul do estado de São Paulo.
Tarcisão revive seus tempos de bom moço rural? Montava muito bem a cavalo, inclusive com dona Gloria na garupa!

Com mais de 50 atores (!!!) torci por cada cena em que a Menezes aparecia. E não foram poucas, por que a pobrezinha interpreta uma rica com três personalidades distintas: Lara, a religiosa recatada, Diana, a devassa de boca suja e a equilibrada Marcia.
Surge a possibilidade de uma operação cerebral e só uma delas sobreviverá, qual? Ou melhor, qual delas ficará com o João Coragem, que tem sentimentos confusos por cada uma, embora a tenha engravidado pela primeira vez na pele da Diana.
Mas isso é só a pontinha do iceberg perto da mirabolante trama de 328 (!!!) capítulos escritos por Janete Clair SOZINHA! Tem até o que Hitchcock chamava de “MacGuffin”, algo que a historia gira em torno, mas que na verdade não tem muita importância.

No caso, um diamante gigantesco que o João acha no capítulo 12 e despertará a cobiça de meio mundo. Porque ele não vendeu logo a pedra rara nas oportunidades em que a teve nas mãos?
Refleti sobre isso agora, mas durante a novela, não houve tempo! Cada núcleo tem um mistério (alguns casos de paternidades obscuras, por exemplo), que assim que é dissolvido surge logo outro.

Além da trama vibrar sempre, todo o elenco tem a oportunidade de brilhar em grandes embates, dramas, tiroteios, catfights entre damas e coisas emocionantes assim. É outro ponto que me divertiu.
A maioria dos atores (exceto Regina Duarte, Tarcíso & Glória, claro!) crescemos os vendo na TV em cores, mas em papéis de coadjuvantes menores, dificilmente em bons momentos como aqui. Passarei a prestar atenção ao trabalho de todos daqui por diante.
Lúcia Alves de Índia Potira, a dúbia Domingas da já falecida Ana Ariel, Suzana Faíni como a engraçada e sofrida Sema, Carlos Eduardo Dolabella a cara do filho, mas excelente como o delegado canalha, José Augusto Branco que tem uma espetacular virada na trama, e DEZENAS de outros nomes. Elenco de ouro, com a chance de demonstrar dá nisso!

Há casos como o de Glauce Rocha, a doidivana mãe da mocinha Menezes (embora tivessem na realidade diferença de quatro anos de idade) de quem gostei e nunca tinha ouvido falar. Ela faleceu logo em 1971, alguns anos antes de eu nascer.

Destaco ainda Claudio Cavalcanti, que hoje se dedica à política como seu Jerônimo Coragem, e que cheguei a vê-lo trabalhando na TV. De longe, Jerômino(como o chamam) é o Irmão Coragem de personalidade mais interessante, cheio de conflitos e culpas.
Esperava mais ingenuidade de Janete Clair. Espantoso como não se amarrava a maniqueísmos, algo que parece tão indissociável ao gênero, e que tanto engessa as histórias.
Todo mundo é bonzinho ou mauzinho, conforme lhe convém. A Sinhana, mamãezinha Coragem, é um doce, mas se pisarem no calo ela ameaça ou incentiva passar fogo!
Até o vilão mor, o prepotente e maquiavélico Coronel Pedro Barros de Gilberto Martinho, de fazer até Odete Roitman parecer um cordeiro em termos de maldades, tem seus dias de bom humor e sentimento. Pode querer vender a filha a troco de diamante, mas ai de quem a não tratar com respeito.

Tecnicamente, as dificuldades são notáveis. Cenários genéricos em que só trocam as cortinas, é claramente audível nas externas o caminhão do gerador de energia, lentes sujas, trilha sonora incidental reaproveitada de sucessos recentes do cinema como O Bebê de Rosemary e 007 A Serviço Secreto de Sua Majestade.
Dá pra perceber que até quase o final havia apenas duas câmeras de qualidade distinta para as cenas de estúdio. Uma delas era boa, a outra achatava as cabeças!
Como mal havia pós-produção, várias vezes os atores tropeçam no texto e continuam mesmo assim. Isso tudo agora é um charme a mais, um gracejo para nos ajudar a transportar no que era ser um telespectador brasileiro em 1970.

Ei! Essa moça nova chamada Sônia Braga que está em pé, será que vai continuar fazendo novela?
O DVD da Som Live / Globo MarcasA arte da capa empolga pelo respeito de ter seguido a linguagem visual utilizada na época. Poderia ficar lado a lado com a trilha sonora, inclusive com a numeração dos DVDs utilizando a fonte antiga da Globo.

Pena que os menus internos não parecem ter sido feitos pelas mesmas pessoas. Destoam muito graficamente do material impresso.
A qualidade da imagem e áudio está boa para seus quarenta anos em fita magnética. Chega a estar superior ao da série Boca do Lixo, gravada 20 anos depois e também distribuída digitalmente há pouco tempo.
O principal problema é a edição. Imagino que não deve ter sido fácil condensar uma das mais duradouras novelas em 27h41, mas poderiam ter tido acompanhamento de alguém que conhecesse a história.
Do jeito que está o entendimento depende de nossa suposição, parecendo às vezes faltar simplesmente capítulos inteiros. Personagens com o casal Ritinha de Regina Duarte e Duda Coragem de Claudio Marzo, mal aparecem.
O triangulo amoroso com Paula (Myriam Pérsia) não faz sentido algum. Do nada a Ritinha quer terminar com Duda e depois, subentende-se (!!!) que Paula terá um filho dele.

Refiro-me apenas a um núcleo, um dos mais prejudicados por que os atores tiveram que sair antes do final ainda por cima, mas são muitos saltos. Não sei se isso era do material original, se algo se perdeu na conservação com a passagem do tempo...
Por isso merecia ter vindo acompanhado de pelo menos um livreto com os bastidores e fotos da produção, além de informações como estas. Boa parte do elenco está em

atividade profissional. Seria interessante ouvi-los relembrar desse marcante trabalho.
Para não dizer que não tem nada, Daniel Filho, o diretor geral, relembra rapidamente a obra ao iniciarmos o disco 1, sem acesso posterior a ele através dos menus.
Como muitos dos produtos da empresa, não houve o cuidado (carinho?) com o consumidor que pretende guardar. Como se uma telenovela em preto e branco de 1970 fosse ser comparada por alguém que a descartaria depois de assistir, como um blockbuster hollywoodiano qualquer.